Os ensinamentos e tradições mais pragmáticas do jornalismo pregam que esta arte deve ser o mais concisa e científica possível. Difícil não discordar. Mas também é difícil resistir às eventuais tentações de divagar sobre temáticas filosóficas, incluindo o nosso propósito em vida. Afinal, para quê vivemos? Qual é o nosso raison d'être? Qual é a verdadeira definição de “felicidade”? O objetivo desta reportagem não é dar respostas para essas indagações abstratas, mas sim mostrar que, para John McAfee, elas não pareciam importar muito.
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Afinal, teremos que concordar: não é qualquer pessoa que revoluciona o mercado com um produto inovador e, anos depois, grava um vídeo cômico ensinando seus consumidores a jogá-lo no lixo. Foi exatamente isso que ele fez em 2013. “Meu nome é John McAfee. Eu sou o fundador da empresa de antivírus McAfee, e, embora eu não tenha mais relação alguma com essa companhia há uns 15 anos, eu continuo recebendo milhões de emails perguntando como desinstalar o programa”, afirma. “Bom, eu não faço a menor ideia”.
No mesmo vídeo, McAfee revela sua preferência por sites de conteúdo pornográfico, critica os rumos que seu próprio antivírus (abandonado por ele em 1994) tomou e aparece rodeado de mulheres em trajes provocantes, consumindo cocaína e atirando com uma pistola automática. “Há 15 anos eu tinha um ótimo software, e eles o pegaram e fizeram sei lá o que com ele”. Este, meus caros, é John McAfee. Um homem que viveu sem medo, sem pudores e com muitas faces desconhecidas pela mídia generalista.
Infelizmente, nós o perdemos no último dia 23 de junho de 2021.
Onde tudo começou
John David McAfee teve uma vida bastante “diferente” desde os seus primeiros suspiros. Ele nasceu em 18 de setembro de 1945, no desconhecido condado de Gloucestershire, na Inglaterra, dentro de uma base militar estadunidense. Seu pai, que estava ali em missão em plena Segunda Guerra Mundial, decidiu levá-lo para sua terra natal e o criou no estado da Virgínia, nos EUA. Infelizmente, o veterano desenvolveu uma forte dependência alcoólica após o fim dos conflitos armados e se suicidou atirando contra a própria cabeça quando McAfee tinha apenas 15 anos de idade.
A infância conturbada acabou incentivando o jovem matemático a entrar no mundo do álcool e das drogas — o que não o impediu de conseguir ótimos resultados acadêmicos na área de exatas. Em pouco tempo, conseguiu um currículo invejável: iniciou sua carreira trabalhando como programador para a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA), fazendo parte, inclusive, do programa Apollo. De lá, foi para a extinta UNIVAC; depois, prestou serviços para a Xerox, para a Computer Sciences Corporation (CSC) e até para a Lockheed (que hoje responde como Lockheed Martin).
Casado, vivia uma vida dupla: escondia seus vícios da esposa, mas os liberava no ambiente de trabalho. “A maioria dos meus chefes também usava algum tipo de droga. Eu estava no campo da tecnologia, e, afinal, éramos a vanguarda nesse campo e líderes em experimentação pessoal. Tive que esconder isso da minha mãe e às vezes da minha esposa. Mas no ambiente de trabalho — dependendo de onde você trabalha —, as drogas eram tomadas abertamente na hora do almoço nos escritórios das pessoas. Eram tempos bizarros”, comentou McAfee em uma entrevista cedida à BBC em 2013.
Foi na Lockheed que o empresário teve seu primeiro contato com vírus de computador, obtendo uma amostra do Brain, que afetava máquinas compatíveis com o IBM PC. Percebendo uma oportunidade de mercado, ele fundou a McAfee Associates em 1987 e lançou o primeiro antivírus comercial do mercado. Diferente do que muitos pensam, porém, sua participação ativa nessa área durou pouco — a marca foi incorporada em 1992 em Delaware, lançou sua primeira oferta inicial pública (IPO) no mesmo ano.
Mas John McAfee, sendo John McAfee, não durou muito tempo no mundo corporativista. Sua atitude excêntrica e seu modo polêmico de comandar uma companhia pública não agradou os acionistas, que logo decidiram substituí-lo por um CEO mais, digamos, “tradicional”. Ele obviamente não saiu de bolso vazio e levou consigo cerca de US$ 100 milhões relativos às suas participações.
Ódio pelo próprio produto
De lá para cá, a McAfee Associates passou por várias mãos, aquisições e fusões — primeiro, ela virou Network Associates em 1997 (após se fundir com a Network General, a PGP Corporation e a Helix Software). Depois, após a venda de algumas subsidiárias, voltou ao nome original. Colaborou ativamente com projetos de código aberto, e, em agosto de 2010, foi comprada pela Intel.
A fabricante de semicondutores chegou a ensaiar uma nova troca de nome para Intel Security, o que rendeu uma declaração bastante polêmica por parte do fundador do software. “Eu estou eternamente grato pela Intel por me livrar dessa terrível associação com o pior software do planeta. Estas não são só palavras minhas, mas sim palavras de milhões de usuários irados”, afirmou. Para a infelicidade do programador, a companhia mudou de ideia e o nome McAfee segue em uso.
A revolta de John é compreensível. De fato, seu antivírus nasceu como um produto pioneiro e deu origem a um mercado bilionário de segurança de endpoint. Porém, o corporativismo rapidamente o transformou em um software odiado por muitos ao longo dos anos 90 e 2000, ficando conhecido por sua lentidão, varreduras que consomem muita memória RAM e atualizações automáticas que são iniciadas espontaneamente nos piores momentos possíveis.
Mesmo remodelado, o McAfee de hoje ostenta um market share de apenas 7,57%, ficando nem atrás do líder Symantec (13,1%) e dos concorrentes Avast (12,69%), ESET (11,45%), WebRoot (8,79%) e Malwarebytes (8,72%), segundo dados da Statista. Para quem já chegou a controlar 67% desse segmento, são números bastante desanimadores para a Intel.
Ioga e medicina experimental
Mas voltemos à figura de John McAfee — o que você faria após sair de uma empresa (até então) bem-sucedida com US$ 100 milhões na conta bancária? Bom, primeiro ele gastou US$ 25 milhões para construir uma mansão de 280 acres em Woodland Park (Colorado, EUA), abrigar cerca de 200 “discípulos” e ensinar ioga. Nessa época, o empreendedor chegou a escrever quatro livros sobre o assunto. Os planos não deram certo, e, em meio a algumas teorias conspiratórias de que a tal mansão era nada menos do que um culto abusivo, a propriedade foi leiloada pouco tempo depois por US$ 5,72 milhões.
Com a crise financeira de 2007, John viu sua fortuna despencar para “míseros” US$ 4 milhões. Vários dos outros softwares que ele havia criado ou investido (incluindo o mensageiro PowWow e a desenvolvedora de firewalls Zone Labs) sofreram bastante com a falência do tradicional banco Lehman Brothers. Decidiu então se mudar para as florestas de Belize e fundar a QuorumEx, que visava fabricar um antibiótico revolucionário que seria capaz de inibir o quorum sensing (QS), que é a forma como bactérias conseguem identificar sua densidade populacional e iniciar reações celulares no corpo infectado.
De acordo com John, a localização de seu “laboratório” não foi escolhida à toa, pois as plantas que crescem às margens do Rio Nuevo possuem componentes únicos que conseguem bloquear esse sistema de comunicação dos microorganismos. Porém, mais uma vez, os planos não deram certo — jornalistas cobriram a iniciativa de uma forma bastante equivocada e vários pesquisadores abandonaram o barco. Segundo pessoas próximas, à esta altura do campeonato, o programador já estava altamente paranoico e usava alucinógenos pesados, incluindo o chamado “pó de macaco”.
É neste ponto da história que se iniciam as complicações judiciais e criminais, tal como as divergências entre as versões de McAfee e do resto do mundo.
Fugindo de Belize
O que temos de fatos é: em abril de 2012, a casa-laboratório de John foi vítima de um mandado de busca e apreensão por parte da Gang Suppression Unit, uma força tática especial do Departamento de Polícia de Belize. Ele foi detido como suspeito de fabricar drogas sem licença e também por porte ilegal de armas de fogo, mas acabou liberado pouco tempo depois. No mesmo ano, em novembro, a polícia bateu novamente em sua porta para questioná-lo a respeito de seu vizinho, Gregory Viant Faull, que foi encontrado morto por tiros de armas de fogo.
Com os níveis de paranóia nas alturas, McAfee quis fugir. Estava convicto de que as autoridades o queriam morto. “A primeira coisa que veio à minha cabeça foi ‘Ai meu Deus, o governo finalmente está tentando se livrar de mim. Ele [o governo] faz isso de vez em quando. Eu certamente fui um grande espinho para eles, e eles simplesmente pegaram o homem branco errado. Meus amigos meio que me acalmaram, e depois disseram que era um absurdo. Na época eu não achava”, explicou, à BBC.
Segundo John, Belize era um lugar “extremamente corrupto e perigoso”, sendo que um político local teria solicitado apoio (tanto com doações em dinheiro vivo quanto com influência) duas vezes antes da polícia invadir seu laboratório pela primeira vez. O programador também se envolveu amorosamente com uma ex-prostituta que, na época, tinha 16 anos — episódio que foi transformado em um cartoon pelas mãos do ilustrador Chad Essley enquanto John se refugiava na Guatemala. Foi detido por entrar ilegalmente no país, e, após dois ataques de ansiedade confundidos com ataques cardíacos, conseguiu autorização para retornar aos EUA.
McAfee veria a prisão mais duas vezes: em 2015, por dirigir embriagado e armado; e em 2019, enquanto estava com seu iate atracado em Puerto Plata, na República Dominicana. Ele carregava armas e munição de grosso calibre.
Candidatura à presidência e problemas com impostos
De volta aos EUA, McAfee se candidatou à presidência em 2016 pelo Partido Libertário. Em sua campanha, prometia a descriminalização da maconha a nível federal, o fim da guerra às drogas, o não-intervencionismo em políticas estrangeiras, uma economia de livre mercado sem redistribuição de riquezas e mais ações contra guerras cibernéticas. O problema é que as visões políticas e econômicas de John eram bastante radicais para os estadunidenses — e, a despeito de sua perda na corrida eleitoral de 2016, suas posições começaram a incomodar o governo.
Ele acreditava, por exemplo, que impostos eram ilegais, e em 2019 afirmou abertamente que não havia preenchido uma declaração de imposto de renda desde 2010 — algo que, segundo ele mesmo, o tornaria “um alvo primário” do Serviço Interno de Receita do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos. Nesse mesmo ano, ele morou durante um bom tempo em um barco atracado em águas internacionais (junto com membros de seu gabinete para uma nova campanha presidencial em 2020), justamente com medo de ser preso por sonegação fiscal.
Não adiantou. No dia 5 de outubro do ano passado, McAfee foi preso na Espanha por evasão fiscal; a acusação havia sido emitida em junho. No dia seguinte, a Comissão de Valores Mobiliários (SEC) também preencheu uma denúncia complementar acusando John de se envolver com um esquema fraudulento de criptomoedas conhecido como pump and dump. Nesse tipo de golpe, uma personalidade do mercado financeiro investe em um novo criptoativo e usa sua influência para aumentar seu valor de mercado rapidamente (pump), resgatando em seguida os seus investimentos iniciais (dump).
De acordo com o documento da SEC, entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018, “McAfee alavancou sua fama para ganhar mais de US$ 23,1 milhões como pagamento secreto para divulgar ao menos sete ofertas iniciais de moedas” (initial coin offering ou ICO). Para o órgão, o programador agiu de má-fé, pois jamais revelou aos seus seguidores que estava sendo pago para fazer propaganda dos criptoativos e ainda se apresentou como investidor e/ou consultor técnico de vários deles, dando a impressão de que ele possuía ligações trabalhistas com os projetos.
De fato, John começou a se interessar por criptomoedas e chegou a publicar em seu perfil no Twitter que “comeria seu próprio pênis em rede nacional” se o preço do bitcoin não atingisse a marca de US$ 1 milhão até o final de 2020. Ele mesmo admitiu posteriormente que essa promessa era “uma forma ardil para integrar novos usuários”. Mesmo assim, a declaração fez com que sua base de seguidores aumentasse em poucos dias de 62 mil para mais de 500 mil.
$WHACKD?
Finalmente, no último dia 23 de junho, a corte central da Espanha — após mantê-lo em cárcere no Centro Penitenciário de Brians 2, perto de Barcelona — aprovou sua extradição para os EUA. Poucas horas depois, John foi encontrado morto. De acordo com o Tribunal Superior de Justiça de Catalunha, “tudo indica” que ele teria se suicidado por enforcamento. A internet, porém, não engoliu essa versão; e nem a viúva Janice McAfee, que está requisitando uma investigação sobre o incidente ao garantir que o programador não tinha ideais suicidas.
Poucos dias antes da morte do pioneiro em segurança da informação, Janice publicou em seu Twitter: “As autoridades dos EUA estão determinadas em ter John morto na prisão para torná-lo um exemplo sobre falar abertamente contra a corrupção dentro das agências governamentais. A imprensa continua a colocá-lo como vilão em sua própria narrativa e não há esperanças de que ele tenha um julgamento justo na América, pois não há mais justiça na América”.
As teorias da conspiração ganharam mais força depois que os internautas resgataram um tweet publicado por John em novembro de 2019. “Estou recebendo mensagens sutis de oficiais dos EUA dizendo: ‘Estamos atrás de você, McAfee! Nós vamos te matar a si próprio (sic)’. Fiz uma tatuagem hoje só para prevenir. Se eu me suicidar, não fui eu. Eu fui whackd. Veja meu braço direito”. Em outro tweet publicado dentro da prisão, o polêmico empreendedor afirma “Estou feliz aqui. Tenho amigos. A comida é boa. Está tudo bem. Saiba que se eu me enforcar à la Epstein, não foi minha culpa”.
O termo whackd — que preferimos manter no original — é uma desfiguração de “whacked”, que pode ser traduzido como “apagado”. O programador aproveitou a ocasião para criar o criptoativo $WHACKD, que estava à venda no site McAfeedex.com; hoje, a página se encontra fora do ar. De acordo com o portal Investing, o token — que não tinha valor algum até a morte do programador — começou a ser movimentado com alta frequência em uma carteira até então desativada.
Alguns acreditam que John já previa sua morte e desenvolveu um programa automático do tipo “dead man switch” (ou chave de um homem morto) que faria isso após seu falecimento, revelando informações sensíveis sobre o governo dos EUA de forma escondida através de tais transações. A referência ao caso Epstein remonta a misteriosa morte do economista Jeffrey Edward Epstein, condenado por abuso sexual e que também foi encontrado “enforcado” sob circunstâncias misteriosas.
A morte de McAfee provocou um pronunciamento até mesmo de Edward Snowden, ex-colaborador da Agência de Segurança Nacional (NSA) que ficou famoso após denunciar diversos sistemas de vigilância usados pelo órgão contra seus próprios cidadãos. “A Europa não deve extraditar os acusados de crimes não-violentos para um sistema judicial tão injusto — e um sistema prisional tão cruel — em que réus nativos preferem morrer a ficar sujeitos a ele. Julian Assange pode ser o próximo”.
Legado inapagável
Mesmo com uma vida recheada de polêmicas e controvérsias, é impossível não reconhecer o legado de John McAfee para a área de privacidade e segurança cibernética. Além de seu pioneirismo ao criar o primeiro antivírus do mercado, ele continuou se envolvendo em diversos projetos importantes, incluindo a Future Tense Central (empresa que desenvolveu uma série de produtos e aplicações de proteção de dados), o Cognizant/DCentral1 (app que mostrava as permissões de outros softwares instalados no celular) e o Everykey, um dispositivo universal de autenticação que previu a onda das chaves físicas FIDO2.
John também foi CEO da holding de empresas MGT Capital Investments e da plataforma de desenvolvimento descentralizada Luxcore. Ele também participava com frequência em eventos do ramo — na DEF CON de 2014, alertou os espectadores a não usarem celulares, sugerindo que aplicativos são usados para espionar internautas inocentes. Chegou a ensaiar uma viagem ao Brasil em 2016 e em 2017 para participar do Mind The Sec, maior conferência corporativa sobre segurança da informação no país. Na primeira ocasião, foi aconselhado pelos seus advogados a desistir da ideia; na segunda, afirmou ter que fazer uma cirurgia de emergência.
John McAfee foi, no fim das contas, uma figura carismática, que viveu da forma mais libertária que conseguiu e faleceu de forma trágica vítima justamente de um ecossistema político-econômico que tanto odiava. Além de Janice, John deixa — de acordo com um tweet dele próprio, jamais revelado ser só mais uma piada do programador ou não — um total de “47 crianças genéticas”.
Fonte: BBC (1), BBC (2), ScoopWhoop, AOL, Statista, EUA SEC, Investing